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Capítulo 1 - The School Sucks



Havíamos começado o maldito ‘’High School’’, num colégio público tradicional localizado no pequeno centro da cidade de Aberdeen. O ano era 1982. Era ruim a sensação de que o ensino médio seria ainda pior que o primário. E ainda teria o querido detalhe de que as turmas seriam um pouco modificadas, pra ver se o rendimento do pessoal melhorava. A moral da escola estava indo de mal a pior, e com isso a diretora da instituição nos visitava com maior frequência em nossas salas, reforçando o fato de que devíamos nos empenhar mais nos estudos, para que a escola pudesse se destacar no rendimento e até receber mais verba e investimentos. Toda vez que ela aparecia na porta e caminhava até o centro da sala de aula para dar seus sermões de mais de 20 minutos, eu me acabava de rir por dentro. Não conseguia entender o motivo de tanta rigidez e de tanta moralidade impregnada naqueles discursos. Quem ela pensava que era pra falar daquele jeito?!

Seu nome era Mrs. Marshall e sempre usava uma saia social (quando a temperatura permitia) e um blazer da mesma cor da saia, equilibrada em saltos altos de cor preta, e um óculos pendurado na altura dos seios por um fio transparente. Eu sempre olhava pra ela e tentava imaginá-la transando de forma obscena: Imaginava uma posição bem ousada, como de quatro ou talvez 69; Às vezes, imaginava também alguns itens de fetiche; Gemidos constrangedores de tão altos; Palavras sujas entre os gemidos; Algumas mechas do coque caindo-lhe no rosto de acordo com o ritmo das estocadas... Eu simplesmente não conseguia evitar esses pensamentos. Ela não condizia com aquela enxurrada de palavras de moral e bons costumes em sala de aula. Aliás, ninguém condiz. Somos meros animais, que cagam, comem, transam e têm pensamentos maldosos e manipuladores. E por esse motivo passei a odiar ainda mais os falsos moralistas. Que, aliás, eram abundantes naquela merda de cidade.

Tive surpresas logo na primeira semana de aulas. Boa parte das pessoas que eu odiava não ficaram na turma em que fiquei. Tiveram muitos novatos também. Pelos novatos eu só podia lamentar. Não dava dez dias para quererem fugir daquela escola pela primeira porta que vissem. Mas a melhor coisa que pôde acontecer mesmo foi um cara loiro e magrinho que gostava de se sentar nos fundos da sala. Ele não era novato, pelo contrário. Chegamos a estudar juntos em uns 3 anos seguidos do primeiro fundamental. E agora, por força da iniciativa da diretora de modificar as turmas, estávamos na mesma classe novamente.

Como havia um bom tempo que ele não estudava comigo, eu não havia parado pra reparar o quanto ele havia mudado fisicamente. Ele sempre fora mais bonitinho que os outros garotos, mas ofuscado por não ser popular. Mas como essa merda de popularidade não tinha a mínima importância pra mim, eu podia captar como ninguém a beleza escondida em sua timidez exacerbada. Seu nome era Kurt e o rosto dele tinha uma combinação harmoniosa de traços delicados com um ar displicente, principalmente por seu marcante visual desleixado. Sempre o via usando as mesmas calças surradas e rasgadas nos joelhos. E só de olhá-lo já dava pra perceber que ele era um tanto esquisito. Identifiquei-me com ele mesmo antes de lhe pronunciar a primeira palavra.

A primeira conversa, se é que posso chamar de conversa, foi quando tive que entregá-lo a nota da primeira prova, já que ele tinha faltado no dia que o professor entregou a todos. Era um teste de física e ele tinha tirado um ‘’F’’, assim como eu.

— Oi... O professor Harold pediu pra te entregar a nota do primeiro teste - falei minutos antes de bater o sinal para o intervalo. Ele estava sentado numa carteira perto da minha.

Ele pegou a prova da minha mão e logo a olhou pra ver a nota. Esboçou uma expressão de tédio tão convincente que me deu vontade de rir.

— Qual foi sua nota? - ele perguntou pra mim enquanto guardava (socava) a prova dentro de sua mochila preta.

— A mesma que a sua. – assim que terminei de falar, o sinal ensurdecedor pro intervalo tocou.

O resto da turma correu desesperada porta afora enquanto eu pegava calmamente uma garrafa de suco dentro de minha mochila. Quando estava fechando a mochila, reparei que Kurt meio que me esperava pra sairmos juntos da sala.

— Vejo que esse ano promete. – disse ele ao meu lado deixando transparecer seu humor.

— Me recusei a estudar pra esse teste. Pra quê vou querer saber como funcionam essas merdas que nunca usarei na minha vida? – falei enquanto saímos juntos da sala.

Ele sorriu como se concordasse comigo. Como estávamos bem próximos um do outro, pude reparar melhor na beleza de seus olhos azuis. Na verdade, reparei em sua figura como um todo, e não vou negar: Ele me atraía pra cacete. Mas tive que conter meus queridos hormônios e continuar caminhando ao seu lado normalmente.

Andamos uns duzentos metros até o pátio do colégio em absoluto silêncio. Comecei a me sentir constrangida pela falta de assunto. Mas ele logo tratou de acabar com isso.

— Eu lembro de você... Fomos da mesma classe no início do primário. Sarah é o seu nome... Não é isso? – Ele disse parando num canto para comer a banana que trouxera consigo. Tentei disfarçar meu sorriso de felicidade por ele ter se lembrado da minha existência. Assenti.

— Também me lembro de você. Era um dos esquisitos da turma. – respondi.

— Certas coisas não mudam. – ele disse com certo orgulho e desânimo, enquanto olhava para frente, encarando o nada.

— Eu gosto de pessoas esquisitas... Sou uma também. – completei. Senti uma onda de nervosismo quando percebi que minha fala havia subitamente atraído seu olhar em minha direção. Sorri de leve para ele, mais com os olhos do que com os lábios propriamente ditos. Ele correspondeu também com um sorriso, um tímido e generoso sorriso. Foi como a martelada rápida e sonora de um juiz: Já estava encantada pelo mundo dele, antes mesmo de saber qualquer detalhe seu...


Capítulo 2 - Something About A Shitty Morning



No dia seguinte, Kurt se sentou ao meu lado na classe, logo após abrir a porta da sala e cruzar a mesma com a cara mais lavada do mundo, sendo que o sinal pro começo da aula havia batido trinta minutos antes. A professora de biologia, que estava localizada no canto esquerdo, perto do quadro, interrompeu seu sonolento discurso sobre as organelas celulares e abaixou seus óculos para encará-lo melhor, com furiosos olhos de indignação. Risos de alguns alunos debochados podiam ser escutados durante a peregrinação de Kurt até as poucas cadeiras vazias restantes, localizadas ao fundo da sala. Logo aquela algazarra foi interrompida pelo orgulho ferido da Mrs. Bishop.

— Boa tarde meu querido... – disse ela tentando ser sarcástica logo nas primeiras horas daquela manhã tediosa.

— Boa tarde. – Kurt respondeu com uma hilária cara de sono estampada em seu rosto angelical. Era notório que o motivo de seu atraso era o fato de que ele havia dormido mais do que a cama naquele dia.

Alguns alunos riram em seguida. Mrs. Bishop revirou os olhos verdes com desdém e colocou os óculos no lugar novamente.

— Se fosse você não ousaria ser engraçadinho depois de mais de trinta minutos de atraso – falou e caminhou até o meio da sala para não ter que gastar tanto a voz devido à distância que estava de Kurt. O trotar crescente de seus scarpins de salto alto davam uma agonia da porra. — Posso saber por que motivo chegou a essa hora?! – interrogou ela olhando fixamente para ele.

— Pergunta pro meu despertador. Por alguma razão mística ele não quis tocar hoje. – Respondeu Kurt com uma cômica calma de quem levantou da cama há cinco minutos atrás. Não aguentei e gargalhei alto do fundo da sala, atraindo alguns olhares de espanto dos que sentavam mais à frente. Kurt olhou pra mim ao meu lado, rindo junto, aprovando meu ato de apoio moral em seu favor.

— Continue rindo mocinha, só que leve seu amiguinho consigo... OS DOIS PRA DETENÇÃO! – Mrs Bishop disse enfurecida enquanto firmava seu rabo de cavalo com as mãos.

Frustrando a crença de Mrs Bishop que eu imploraria de joelhos pra não ir pra detenção, levantei da carteira no mesmo instante e olhei pra Kurt aliviada, agradecendo por ter me ajudado a sair daquela tortura de aula. Ele me olhou com aquela cara de sono/tédio e se levantou também, provocando o riso de alguns bastardos da classe. Saímos da sala juntos.

— Obrigada cara, você é meu herói. – disse a ele com sarcasmo enquanto andávamos em direção da sala da detenção.

— Disponha. – ele respondeu com os olhos semicerrados, achava que ele ia dormir ali mesmo.

— Cara, você tá péssimo... O que aconteceu? Foi dormir tarde ontem?

— É... Saí com uma galera ontem... Conseguimos mais erva que o de costume... Acabei voltando tarde demais.

De início, espantei-me com aquela fala. Naquela época, havia uma campanha muito forte anti-drogas em nosso estado. E eu, até então, particularmente não conhecia ninguém que as usava. Bom, com a exceção de Margot Cadence, uma garota que morava na minha rua e que ficou famosa na cidade por ter engravidado aos catorze anos de um traficante. Mas essa história não vem ao caso no momento. Talvez mais tarde.

— Então você fuma maconha? – perguntei tentando disfarçar a minha surpresa.

— Claro... Você nunca fumou? – ele me perguntou parando de andar para apoiar as costas numa grade que ficava perto da quadra de esportes.

— Nunca... Mas sou super a fim de experimentar.

— O que vai fazer depois da aula? – ele me perguntou antes de ajeitar uma mecha de cabelo loiro que escorregou em seu olho.

— Acho que nada...

— Tenho uns baseados lá em casa. Se quiser podemos ir para a ponte que fica perto de onde moro, ao entardecer. Nenhuma alma viva costuma aparecer por lá.

— Ok... Combinado então – lhe respondi tentando ocultar a ansiedade que instantaneamente comecei a sentir. — Mas como você fica quando fuma? O que costuma sentir?

Kurt riu brevemente e começou a tentar me explicar como era a brisa de maconha.

— É meio foda eu explicar isso por meio de palavras... – Kurt encarava um horizonte imaginário enquanto falava nesse momento — Só fumando mesmo pra entender... Mas arriscando tentar dizer algo, é como se você estivesse numa dimensão mais leve, imersa numa atmosfera estranha, mas confortável.

Logo depois que Kurt concluiu sua tentativa de descrever a brisa da maconha, fomos interrompidos por uma sequência irritante de sons que cada vez mais se aproximavam de nós. Quando seguimos os olhos de acordo com o som, vislumbramos Mrs. Bishop trotando com seus sapatos de salto alto, caminhando impaciente em nossa direção, ainda a uma boa distância de nós. Olhei para Kurt neste momento e ele fez um gesto aproximando alguns dedos da boca, simulando uma ânsia de vômito. Acho que (in) felizmente ela não conseguiu ver aquilo devido o ângulo que estava, em relação a Kurt. Gargalhei na mesma hora e puxei o loiro pelo antebraço, cruzando alguns corredores em passos acelerados, rumo à sala da detenção. Seu antebraço era fino e senti a presença de alguns pêlos compridos nele com aquele toque. De alguma maneira bem estranha, me senti íntima de Kurt naquele momento.

Chegando lá, a supervisora mudou de ideia por causa da influência de Mrs. Bishop. Resolveu nos presentear com uma SUSPENSÃO de 2 dias, apoiando—se naquela ideia de melhoramento de notas e resultados, tentando justificar sua rigidez exagerada. Quando ela deu o veredito, olhei pra Kurt com um olhar que dizia ‘’já começamos o ano bem’’. Ele sorriu discretamente com os olhos, reforçando ainda mais aquela nossa condição de cúmplices.

Depois daquele sermão pra lá de chato, fomos liberados para retornar à classe. Ao menos, se estivéssemos na detenção, não teríamos que voltar para a tortura que eram as aulas de biologia da Mrs. Bishop. Acho que ela forçou a barra da suspensão a troco disto também, de nos atormentar ainda mais.

Aquela manhã como um todo pôde ser resumida na expressão ‘’martírio sem fim’’. Exceto pela aula de artes plásticas. Quem lecionava essa matéria era uma mulher sensacional chamada Mary Jane. Ela dispensava as nomenclaturas excessivamente formais e me encantava por possuir um visual hippie, além de esboçar uma paixão sem igual pelas artes até no simples ato de respirar. Eu não entendia muito bem o fato de ela ainda continuar lecionando naquela escola formatada e retrógrada, que era tão contrastante com a liberdade e fluidez que ela permitia em suas aulas. ‘’Como Mrs. Marshall, a diretora, não havia ainda provocado a sua demissão?’’ A dúvida ainda perdurava, até que fiquei sabendo que Mary Jane era amante de longa data de um dos donos daquela instituição.

Quando o sinal tocou na saída, recolhi meus pertences com pressa e peregrinei com tédio rumo à entrada do colégio. De repente, senti a presença de uma sombra um pouco atrás de mim. Era Kurt.

— Você vai querer mesmo vir comigo hoje mais tarde? – ele me perguntou instantes antes de apertar um isqueiro mirando no cigarro que trazia entre os lábios.

— Claro... – disse animada com a ideia de experimentar o baseado.

— Então podemos nos encontrar no prédio da prefeitura. Às cinco.

— Fechado.



Capítulo 3 - Getting High



Lá pelo meio daquela tarde nublada, interrompi meu estado de hibernação em cima da cama e me agasalhei melhor para ir me encontrar com Kurt. O lugar sugerido por ele para o encontro, o prédio da prefeitura, se localizava a umas três quadras da casa em que morava com meu pai. Aliás, falando nele, agradeci mentalmente por não estar em casa desde quando eu tinha chegado da escola. Assim evitava ter de lhe dar grandes explicações para sair de casa. Provavelmente ele estava torrando nossas preciosas economias enchendo a cara por aí... Meu pai tinha um sério problema com o alcoolismo e reservarei um momento mais adequado para expor melhor os detalhes sobre esse drama que eu vivia dentro de casa.

No momento, o mais importante seria a mentalização da minha figura caminhando pelas ruas mórbidas e pacatas de Aberdeen. Eu fitava todas aquelas ruas enquanto caminhava, via todas aquelas casas hermeticamente enfileiradas, alguns carros que decoravam algumas garagens, via igrejas, calçadas, pessoas... Aquilo tudo me oprimia de forma muito intensa... Naquela época eu era muito jovem e não sabia definir direito o que realmente sentia. Só sabia que era uma apatia muito grande em relação ao mundo externo e certo pessimismo convicto em relação a meu futuro. Por mais que me esforçasse, não conseguia ver muita coisa além de uma vida solitária e apoiada nos breves momentos felizes de embriaguez. Aproveito a oportunidade para introduzir a ideia de que trágica e irremediavelmente eu estava seguindo os mesmos passos do meu pai em relação ao alcoolismo.

Mas retomando a ideia original, eu caminhava um tanto distraída, imersa em centenas de pensamentos sufocantes e urgentes. Até que minha atenção foi subitamente atraída ao vislumbrar, um pouco ao longe, a figura de Kurt sentado na beira de uma calçada, um pouco à frente de uma construção grande o suficiente para se destacar das demais à sua volta. Andava tão distraída que não havia percebido que já havia chegado à prefeitura. Andei alguns metros até onde ele estava.

— Oi... Está há muito tempo aí? – disse a ele parando de caminhar por um momento, enquanto checava em meu relógio de pulso se havia me atrasado.

— Não... Cheguei quase agora... – disse ele enquanto calmamente tragava um cigarro. Levantou da calçada. Percebi que ele usava sua mochila preta da escola nas costas — Quer um? – perguntou ele apontando para o cigarro que tragava.

— Quero.

Eu havia começado a fumar cigarros convencionais a pouco tempo e já sentia que daqui pra frente isso se transformaria num vício, ao mesmo tempo que em um bom companheiro contra meus problemas de ansiedade. Kurt remexeu o bolso da frente de sua calça jeans e retirou um cigarro da carteira, acendendo pra mim em seguida com seu isqueiro. Traguei profundamente, fechando os olhos de satisfação ao sentir a fumaça me acometer. Abri os olhos e a soltei aliviada. Só foi nesse momento, devido a pouca distância entre nós dois, que reparei na maneira como Kurt estava vestido. Estava com a mesma calça e o mesmo casaco que usava de manhã no colégio, e a blusa... Bom, certamente ela me chamou a atenção. Era uma blusa cuja estampa era uma foto de David Bowie, na sua fase psicodélica e enigmática de Ziggy Stardust.

— Gosto da sua camisa – elogiei.

— Então você também curte o Bowie...? – comentou ele entre tragadas.

— Claro... Como poderia não ter uma tara por esse homem? – disse em tom de brincadeira seguidamente de uma profunda tragada naquele cigarro.

— Tem razão... – disse o loiro.

Andamos por uns dez minutos, passando por mais ruas e casas deprimentes de Aberdeen. Um vento gelado nos acompanhava anunciando a progressiva chegada da noite. Pelo caminho, andávamos na companhia de um silêncio quase que absoluto, frustrado apenas pelo ruído de alguns carros que passavam por nós. Minha mente decolava em uma série de pensamentos aleatórios.

— Chegamos na minha rua – Kurt disse interrompendo o fluxo de meu transe, apontando para a próxima sequência de casas à nossa frente. Assenti com a cabeça.

Era uma rua como qualquer outra de Aberdeen: Uma sequência de casas feitas de madeira para ajudar no isolamento do frio, com fachadas parecidas, todas pintadas com cores parecidas. Mas ao mesmo tempo me chamava a atenção por haver uma grande área verde ao fundo, desabitada, composta por alguns arbustos, e mais ao fundo, por pinheiros. Instantes após termos adentrado aquela rua, Kurt continuou:

— Eu moro aqui – ele dizia apontando para uma das casas. — Vamos entrar no quintal e atravessá-lo até os fundos. Assim cortamos caminho.

A fachada era modesta, como todas as outras daquela rua. Havia um tapete marrom escuro na porta e algumas plantas com flores no jardim. Seguimos pela lateral do terreno, que dava acesso direto aos fundos, onde havia a grande área verde. Logo estávamos adentrando o local, desviando de alguns arbustos esparsos pelo caminho. O silêncio quase absoluto se pronunciava novamente, agora frustrado apenas pelo ruído de nossos passos sobre galhos, pedras e folhas secas. Ao longe, já avistava algo que parecia ser a tal ponte.

Andamos mais um pouco mata adentro e logo nos deparamos com o nosso destino.

— Chegamos, é aqui. – o loiro disse parando de caminhar.

Kurt tirou sua mochila preta das costas e a apoiou num grande pedregulho, a abrindo em seguida. Tirou de lá uma toalha de tecido azul. A sacudiu no mesmo instante, desdobrando-a desajeitadamente (o que me fez rir por dentro) e depois a esticou no chão, num local plano, perto da ponte. Ele se sentou sobre o pano e fez um gesto para me sentar também. Logo cruzei minhas pernas e me abaixei, me acomodando melhor sobre o pano. Eu estava ainda um tanto ofegante, devido à nossa caminhada. Olhei para o lugar ao redor de mim. Havia um pequeno lago à nossa frente, cujas águas eu só conhecia um pequeno trecho, que desaguava num local perto de onde eu morava. A chegada da noite, que nesse momento já avançara consideravelmente, trazia um tom soturno àquela paisagem.

— Quando escurecer, não se preocupe. Trouxe uma lanterna. – o loiro disse com um tom tímido depois de retirá-la da mochila. — E aqueles postes de luz logo ali atrás não nos deixam na mão – continuou ele, se referindo aos postes que ficavam perto dos fundos das casas de sua rua. Assenti com a cabeça.

— Me empresta a lanterna – pedi com um gesto. Ele me obedeceu.

Fiquei acendendo e apagando a lanterna, testando como sua claridade funcionava naquele princípio de breu sobre nós. Depois a direcionei no rosto de Kurt, rindo em seguida de sua careta ao encarar aquele clarão repentino sobre seus olhos azuis.

— Vai se fuder, Sarah... – ele protegeu os olhos com o antebraço. Eu só ria.

— Me desculpe, prometo me comportar... – tirei a lanterna da direção de Kurt e a segurei numa altura um pouco abaixo de meu queixo, simulando uma cena de terror. Fiz umas caretas bizarras.

— Porra, não faz isso – eu ria da maneira calma com que ele falava — Tenho medo de não conseguir dormir hoje à noite.

Mostrei meu dedo do meio a ele, que sorriu. E desliguei a lanterna. Kurt abriu a mochila novamente. Retirou de lá uma pequena sacola plástica.

— Pronta? – perguntou ele retirando um baseado da sacola com certo entusiasmo.

— Nasci pronta – sorri igualmente animada com aquele momento.

Kurt posicionou o pequeno cigarro em seus lábios com calma, enquanto apalpava seu bolso da frente, à procura do isqueiro. Logo o encontrou e o apertou repentinas vezes, aproximando-o do baseado. Ele deu uma tragada, meio que como um ato de demonstração do que eu deveria fazer.

— Traga e não solta, guarda pra você... – disse ele me entregando o pequeno cigarro.

Nessa hora, nossos dedos se tocaram. Posicionei o beck entre meus lábios e imitei Kurt, sentindo uma fumaça diferente atravessar minha garganta. Sorri e entreguei novamente a ele. Ficamos nessa repentinas vezes, e aos poucos fui sentindo na real como era a brisa de maconha. Começou com uma brisa leve, tímida, que ia ficando mais viva... Eu olhava para aquele lugar ao nosso redor, e tudo nele parecia ainda mais calmo.

— Esse lugar é tão calmo... Realmente deve passar nenhuma alma viva por aqui... – disse a ele, que tragava ao meu lado. — Com exceção de nós dois. – completei.

— Continuo com a tese de que aqui passa nenhuma alma viva... – Kurt disse com a voz mais rouca que o normal, encarando um horizonte imaginário e melancólico à sua frente.

Quando ouvi aquilo, me senti automaticamente conectada com seu interior. De alguma forma ele havia percebido meu certo desdém pelo universo e, mais do que isso, também compartilhava desse sentimento tão cruel. Olhei pra ele e, segundos depois, ele retribuiu, me olhando de volta. Sorri tristemente e rapidamente desviei de seu olhar, me imergindo instantaneamente em pensamentos românticos e platônicos em relação a ele. Ele me entregou o beck novamente, me despertando momentaneamente desses pensamentos.

— Pensando bem... Você tem toda razão. – lhe respondi antes de uma tragada.

— Estamos mortos e suspensos... Não se esqueça que tudo sempre pode piorar. – ele fez o favor de me lembrar desse querido detalhe, que momentaneamente eu havia esquecido.

— Porra... Eu poderia ser poupada de ouvir isso durante minha primeira brisa...

— Foi mal... – disse ele em um tom distante.

— Putz, já sei que vou ouvir pra caralho amanhã, quando meu pai perceber que não irei para a escola. – revirei os olhos.

— Seus pais também são separados? – ele perguntou me encarando.

— É, são... – acho que não consegui disfarçar meu semblante triste ao admitir isso. – Os seus se separaram há quanto tempo?

— Há sete anos atrás, quando eu tinha sete anos. E os seus?

— No ano passado... Majoritariamente a culpa foi do meu pai. Ele é alcoólatra. E quase matou minha mãe em um de seus porres...

— Que coisa... – Kurt disse e lhe entreguei o beck. — Mas porque então está morando com seu pai? – perguntou ele, curioso.

Ri rapidamente da sacada de Kurt, que mesmo brisado fez aquela colocação pertinente.

— Boa pergunta... Na verdade minha mãe não é nenhuma beata nessa história, ela estava traindo meu pai com outro. Meu pai descobriu e numa certa noite encheu a cara como nunca antes tinha o visto fazer. Aí ele enlouqueceu, eles começaram a brigar e o resto você já sabe...

— E entre uma mãe adúltera e um pai alcoólatra, você preferiu o pai alcoólatra? – ele disse rindo da minha cara.

— Eu meio que tomei as dores do meu pai... Eu fiquei extremamente decepcionada com ela, ao saber que ela tinha outra família, inclusive outros filhos – eu já falava com certa dificuldade. Dei mais uma tragada forte no beck. — Ah... Cansei de falar de dramas familiares... Quero curtir essa belezinha aqui.

A noite já havia finalmente chegado, carregando consigo um véu negro e gélido que nos envolvia. Apesar dos postes ajudarem na iluminação, Kurt ligou a lanterna. Uma ventania gélida nos abraçou de repente e instintivamente me encolhi de frio. Não sei o quê exatamente me fez fazer o que fiz em seguida, mas displicentemente inclinei minha cabeça para o lado, a apoiando num dos ombros de Kurt. Eu já era toda feita de brisa, e talvez por esse motivo tenha me sentido fortalecida a externar um pedaço do que circulava pela minha cabeça. Fechei os olhos e deixei aquela sensação de prazer invadir meu corpo frágil. Estava tendo uma onda forte. Eis que sinto um dos braços do loiro envolvendo minhas costas, correspondendo àquele meu ato...


Capítulo 4 - Under The Moon



Fiquei curtindo aquela brisa e aquele princípio de abraço enquanto mil e uma coisas malucas e inquietas brotavam na minha cabeça. Senti muita vontade de agarrá-lo. Contudo, ao mesmo tempo sentia uma ansiedade violenta por achar que eu não saberia conduzir aquele momento de forma romântica, e suspeitava que Kurt também não o faria, por ser bastante tímido. Depois de uns instantes, quando aquilo tudo já fervia em minha mente, tomei coragem e resolvi desencostar minha cabeça de seu ombro. E olhei para o lado, a fim de encontrar seus olhos. Instantes depois, senti meu coração palpitar ao perceber seu rosto se virando aos poucos em minha direção, e seus lindos olhos azuis aos poucos se direcionando aos meus. Fiquei nervosa de repente, ao mesmo tempo em que aquela delícia de brisa me acometia.

E num turbilhão de pensamentos, resolvi atravessar a barreira da ansiedade e movi uma de minhas mãos até a lateral de sua cabeça. Continuei alisando delicadamente seus cabelos claros com meus dedos, atenta ao tipo de reação que ele teria com aquilo. Eu percebi que ele ficou um tanto envergonhado com aquele toque, pelo olhar baixo e distante que lançou, meio que evitando o contato visual comigo. Mas ao mesmo tempo não rejeitou aquele toque, o que me encorajou a continuar. Desci um pouco a mão até a sua nuca e envolvi algumas mechas de seu cabelo em minhas mãos. Seu cabelo era bem macio e eu continuava aquilo só aproveitando o momento, ao mesmo tempo em que rezava para ele finalmente olhar para mim novamente. Fiquei nesse carinho por uns instantes, até ele finalmente retribuir o olhar.

Seu olhar era leve, meigo, e nesse momento soltei uma risada, destilando aquele nervosismo que eu sentia, e que provavelmente Kurt também compartilhava. Ele sorriu levemente com os lábios e com o olhar, me dando tempo para pensar no que faria em seguida. Decidi apenas diminuir aquela (já pequena) distância entre nós, inclinando levemente meu tronco em sua direção. Fechei meus olhos e apenas selei nossas bocas, sentindo seus lábios finos de encontro aos meus. Uma de minhas mãos segurou sua nuca e ele correspondeu um pouco depois alisando minhas costas.

Nos beijávamos com calma e carinho. Senti que Kurt estava um tanto tenso e tentei aliviar aquela tensão inclinando meu rosto, aprofundando aquilo sem pressa. Fui pedindo passagem de sua língua aos poucos. Eu agia na hiper intuição, aquele estava sendo meu primeiro beijo de fato. Eu já havia dado uns selinhos num primo meu, mas nada complexo ao ponto de envolver línguas e sentimentos realmente genuínos de desejo.

Nossas línguas se moviam de um jeito descoordenado, atrapalhado. Acredito que ele também não devia ter tanta experiência com beijos de língua. Mas os segundos passavam freneticamente enquanto eu sentia uma miscelânea de gostos diferentes. Um misto de maconha, liberdade e desejo. Tudo ao mesmo tempo. Minha mente fervilhava, ao mesmo tempo em que se esforçava em se concentrar naquele beijo. Com o tempo conseguimos sincronizar melhor o ritmo de ambos e aquilo começou a me deixar com calor. Ele me envolvia em seus braços com um pouco mais de firmeza. Um vento gélido da noite insistia em nos cercar e contrastava com aquela cena.

Quando o fôlego pareceu escasso, nos desprendemos um do outro. Abri os olhos devagar e brevemente tive a impressão de não saber onde estava, de tão concentrada e imersa naquela sensação do beijo. Olhei para Kurt, acanhada, sem saber o que dizer, ou fazer. Ele retribuiu com um olhar ainda mais tímido, porém doce. Logo desviei de seu olhar e inclinei meu tronco para trás, deitando sobre o pano de tecido azul. Kurt pegou um baseado e acendeu ao meu lado. Deu uma tragada. Só foi naquele momento, deitada olhando para o céu, que reparei como estava a lua naquela noite.

— Só agora fui reparar que estamos sob uma bela lua crescente... – falei olhando pra cima.

— É mesmo – ele disse depois de seguir meu olhar e me passou o beck.

— Detesto aquele tipo de pessoa que só vê beleza na lua quando ela tá cheia – proferi sem pensar enquanto dava uma tragada.

— Por quê? - perguntou ele sentado ao meu lado.

— Por que isso soa superficial pra mim. E dá pra fazer um paralelo com quase tudo. Só damos valor para as coisas quando nos convém: Quando há serventia, beleza exacerbada ou outra vantagem qualquer. E ignoramos que do outro lado há alguém ou algo que, mesmo deixando de ser tão útil ou belo, continua vivendo. E existindo – eu falava enquanto revezávamos o beck, sem desviar o olhar do céu sobre nós.

— Acho que consigo entender. Somos uma raça de filhos da puta usurpadores.

— É por aí... – dei uma pausa para um trago, enquanto buscava algo na minha cabeça para esclarecer ainda mais minha tese. — Prestamos tanta atenção na aparência que... Acabamos por deixar a essência escorrer covardemente por entre nossos dedos.

— Tem razão – Kurt disse — Você acredita em Deus? - me perguntou após uma longa pausa.

— Boa pergunta... – soltei uma pequena risada. — Por mais que eu diga que não, sempre sinto a necessidade de acreditar em algo.

— Essa necessidade é bem frustrante, não acha?

— Muito! É um dos meus maiores conflitos na verdade... – nesse momento inclinei meu corpo para o lado pra encará-lo melhor. — Eu queria conseguir seguir sem acreditar em nada. Mas caio naquela de que, estamos vivos, dentro de um planeta, com diversas capacidades... Às vezes me parece muito óbvio o nosso propósito de estarmos aqui.

— E qual seria? – o loiro perguntou curioso enquanto dava uma tragada.

— Aquela velha bobagem: Estaríamos aqui para evoluir e sermos melhores.

— Mas melhores em relação a o quê?! Ou quem?! – Kurt falava com ironia enquanto ria daquela nossa tentativa suspeita de tentar decifrar o mundo.

— Se mesmo chapada eu não tenho uma resposta pra isso... O que esperar de centenas de milhares de pessoas inertes e acomodadas, espalhadas por todo o globo terrestre? – dei uma pausa para um profundo suspiro – Somos um bando de bosta. Bostas que andam e falam. E que têm um ego de proporções infindáveis...

— Sempre que tenho esses pensamentos envolvendo tentativas de decifrar o mundo, acabo nessa conclusão. Cremos ser o topo da cadeia evolutiva. E nada de efetivo fazemos pra verdadeiramente ocupar essa posição. Só acabamos nos comportando como pedaços de merda ambulantes, sufocando, traindo, desrespeitando o outro.

Olhei para Kurt e ficamos um pequeno instante nos encarando. Consegui sentir que ele se revoltara repentinamente, principalmente em sua última fala. Aquele céu escuro sobre nós me dizia muitas coisas. E uma delas é que, tudo indicava que eu havia encontrado alguém ‘’sui generis’’ e que deveria dar valor a isso.

Ficamos revezando aquele beck, enquanto algumas teorias e ideias brotavam e lotavam nossas mentes. A noite já avançara consideravelmente ao nosso redor e confirmei isso ao checar meu relógio de pulso. Informei a Kurt sobre a hora. Infelizmente já era hora de ir. O ajudei a guardar as coisas em sua mochila e juntos começamos a fazer o caminho de volta. Caminhamos pela área verde até chegarmos naquele atalho do quintal de sua casa.

— Você tá legal? – ele me perguntou um tanto preocupado.

— Estou ótima... Aquela onda forte já passou. Bom... Então a gente se vê – me despedi dele já parando de caminhar, perto da fachada de sua casa.

— Eu te levo até sua casa – ofereceu ele.

— Ah, não precisa... Tá tranquilo pra mim.

— Tem certeza disso? – Kurt perguntou com aquele jeitinho tímido. Ri por dentro.

— Absoluta. Sei me cuidar sozinha.

— Se você insiste... – ele disse ajeitando melhor a mochila sobre suas costas. — Então até mais.

— Obrigada por hoje. Me diverti muito – lhe agradeci seguidamente de um sorriso.

— Não foi nada... Também me diverti.

Me aproximei dele e dei um beijo em sua bochecha. Sorri rapidamente e virei meu corpo em direção a meu caminho de volta.

— Sarah! – Kurt gritou meu nome.

— O que foi?! - Virei meu corpo e recuei um pouco o caminho, indo em sua direção.

Kurt ficou uns instantes em silêncio. Fiquei olhando para ele para tentar entender o motivo daquilo.

— Porque o silêncio...? – perguntei.

— Pensando bem, acho que seu pai não precisa saber que você está suspensa... – disse ele pensativo.

— E como seria isso?

— Fingindo que vai pra aula como se nada tivesse acontecido...

— E pra onde eu iria?

— Viria comigo. Amanhã minha tia Mary vai ter ensaio da banda dela. Podemos ir pra lá sem problemas.

— Puta merda, ótima ideia! – disse um tanto eufórica, não conseguindo esconder minha admiração pela aquela ideia. Kurt apenas sorriu. — E sua tia tem uma banda?! Isso é bem maneiro.

— É legal. Ela é bem diferente da maioria da minha família. Vai gostar de conhecê-la.

Marcamos direitinho os detalhes para nosso plano dar certo. Depois finalmente fui pra casa. Pelo caminho, só conseguia pensar em tudo o que tinha acontecido naquela noite. E aquele beijo... Simplesmente não saía da minha cabeça. Me peguei várias vezes sorrindo abobalhada enquanto caminhava pra casa. Aliás, chegando lá, felizmente vi que meu pai ainda não havia chegado em casa. Só pedia para que ele não tivesse se metido em encrenca mais uma vez. Calmamente fui caminhando até meu quarto. Tirei os sapatos e me joguei com tudo na cama. Fechei os olhos e sorri sozinha ao perceber que ainda sentia um pouco da brisa. Senti como se aquela noite com certeza marcaria a minha vida. Marcava o começo da minha desesperada ânsia por prazer e entusiasmo nesse eterno cenário estéril em que eu enxergava a vida.





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